Eu me sentei na beira da cama dela por um tempo, antes de dizer essas palavras. Para dizer a verdade, eu não queria pronunciá-las. Eu não queria acordá-la. Uma hesitação esquisita pairou sobre mim enquanto eu me sentava na escuridão da manhã. Eu fiquei em silêncio. Eu sabia que minhas palavras a acordaria para um novo mundo. Durante quatro rápidos anos ela havia sido nossa, só nossa. E agora tudo iria mudar.
Eu a coloquei na cama uma noite antes como “minha menina”- propriedade exclusiva de Mamãe e Papai. Mamãe e Papai liam para ela, ensinavam, escutavam ela. Mas a partir daquele dia, outra pessoa faria isso também.
Até aquela manhã eram Mamãe e Papai que enxugavam suas lágrimas e colocavam Band-Aid nos seus machucadinhos. Mas a partir daquele dia, outra pessoa também o faria.
Eu não queria acordá-la.
Até aquele dia, a vida dela era essencialmente limitada a nós – Mamãe, Papai e ao irmãzinho Leonardo. Mas naquela manhã, aquela vida cresceria – novos amigos, uma professora. O mundo dela estava naquela casa da Vila das Palmeiras da Rua Voluntários da Pátria, 2505, casa 17, do bairro de Santana, em São Paulo. O quarto dela, seus brinquedos, seu balancinho. Naquela manhã seu mundo expandiria. Ela ia entrar nos corredores sinuosos da Educação – pintura, leitura, cálculos…sendo transformada.
Eu não queria acordá-la. Não por causa da escola. Era uma boa escola – Fita Azul – do lado de casa. Não porque eu não queria que ela aprendesse. Deus sabe que eu queria que ela crescesse, lesse, ficasse madura. Não porque ela não quisesse ir. Durante a semana passada todinha ela só falou da escola! Estava ansiosa pra vestir aquela sainha azul com suspensório.
Não. Eu não queria acordá-la porque eu não queria abrir mão dela.
Mas mesmo assim eu a acordei. Eu interrompi sua infância com a inevitável proclamação “Luciana, acorde!… Está na hora de ir à escola!”
Eu demorei demais pra me arrumar. A mãe dela me viu cabisbaixo, e me ouviu sussurrando algo que ela não entendeu... “O sol nasce e o sol se põe”. Eu certamente dizia para mim mesmo - “Você não vai agüentar passar pelo casamento dela.” Eu estava errado. Aguentei, com um caroço de abacate na garganta, mas aguentei.
Deixei ela na escola e fui direto para o metrô em direção ao trabalho. Eu queria ficar aquele dia com a Lu. Eu achei que deveria dar a ela um pouco de segurança de pai. Mas na verdade era eu quem estava precisando de segurança.
Apesar de ser alguém que se dedica a trabalhar com palavras, eu consegui muito poucas para compartilhar com ela. Eu disse a ela que esperava que ela gostasse da escola. Disse-lhe para obedecer à professora. Eu disse, “se você se sentir sozinha ou com medo, diga à professora para ligar para mim e eu virei e lhe pegarei.” “Tá bom!”, ela sorriu. Então ela perguntou se poderia escutar uma de suas músicas infantis. “Tá bom!” Eu respondi.
Daí, enquanto ela cantava aquela canção, eu prendia o choro. Eu a observei enquanto cantava.... Ô tralalalalaô... Ela parecia grande. Seu pequeno pescoço se esticava o máximo que podia para ver por cima do portãozinho da escola. Seus olhos estavam famintos e brilhantes. Suas mãos estavam suando enquanto segurava na minha mão. Seus pés tinham tênis cor de rosa com turquesa, novinhos em folha, cheirando chiclete. Era um “bubblegummers” se é que sei pronunciar o nome. Mas não me esqueço das duas “maria-chiquinhas” no cabelo liso, castanho claro.
Eu pensei que estava certo, e resmunguei para mim mesmo. “Eu não agüentarei passar pelo casamento dela.”
O que está se passando na cabeça dela? Eu imaginei. Será que ela sabe o quão alta é essa escada da Educação que ela vai começar a subir hoje de manhã?
Não, ela não sabe! Mas eu sabia. Quantos quadros de salas de aula aqueles olhos verão? Quantos livros as suas mãos segurarão? Quantos professores os seus pés seguirão e – ai, Meu Deus! – imitarão?
Se eu tivesse poder, eu reuniria no mesmo instante todos os professores, instrutores, monitores, auxiliares que ela teria nos próximos dezoito anos e anunciaria, “Esta não é uma estudante comum. É minha filha. Tenham cuidado com ela!”
Ao deixa-la na escola, minha grande filha se tornou pequena de novo. E foi a voz de uma menina muito pequena que quebrou o silêncio. “Pai, eu não quero ir.”
Eu olhei para ela. Os olhos que antes estavam brilhantes agora pareciam amedrontados. Os lábios que haviam cantado agora estavam trêmulos.
Eu lutei contra um desejo extraordinário de atender ao seu pedido. Tudo em mim queria dizer “Tá bom, vamos deixar isso pra lá e vamos embora daqui!” Por um breve momento eu considerei a possibilidade de seqüestrar minha filha, pegar minha esposa e fugir das garras horríveis do progresso para viver para sempre no Himalaia.
Mas eu sabia que era errado. Eu sabia que era hora. Eu sabia o que era certo e que ela ficaria bem. Mas eu não sabia que seria tão difícil dizer, “Querida, você estará bem. Venha, eu lhe levo.”
E foi tudo bem. Um passo dentro da sala de aula e o gato da curiosidade tomou conta dela. E eu saí. Eu abri mão dela. Não tanto. E não tanto quanto eu tive que fazer no futuro. Mas eu abri mão do quanto eu podia naquele dia.
Enquanto andava de volta para o caminho do trabalho, um versículo bateu na minha cabeça. Foi uma passagem que eu havia estudado antes, muito antes, quando frequentava a igreja que meu pastoreava. Os eventos de hoje levaram o versículo da teologia em preto e branco para a colorida realidade - “Que diremos, pois, diante dessas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós – como não nos dará juntamente com ele, e de graça, todas as coisas? Romanos 8:31-32
E perguntei pra Deus - Foi assim que o Senhor se sentiu, Deus? O que eu senti naquela manhã pareceu em alguma coisa com o que o Senhor sentiu quando abriu mão de seu Filho? Se foi, então isso explica tantas coisas. Explica a proclamação dos anjos para os pastores nos arredores de Belém - Um pai cheio de orgulho ao anunciar o nascimento de seu filho. Explica a voz no batismo de Jesus, “Este é meu Filho com o qual me comprazo…” O Senhor fez o que eu queria fazer, mas não podia. Explica a transfiguração de Moisés e Elias no topo da montanha – O Senhor os mandou para encorajá-lo. Explica o quanto o Seu coração deve ter doído ao ouvir a voz quebrantada de seu filho “Pai, afasta de mim este cálice.”
Eu estava deixando a Lu num ambiente seguro com uma professora compassiva, a qual estaria pronta para enxugar qualquer lágrima. O Senhor deixou Jesus numa arena hostil com um soldado cruel, o qual deixaria as costas dele em carne viva.
Eu disse Adeus pra Lu sabendo que ela faria novos amigos, daria gargalhadas e desenharia. O Senhor disse Adeus a Jesus sabendo que cuspiriam nele, ririam dele e o matariam.
Eu abri mão da minha filha sabendo que, se ela precisasse de mim, eu estaria ao lado dela imediatamente. O Senhor disse Adeus ao seu filho totalmente ciente de que quando ele mais precisasse de Ti, quando seu grito de desespero bradasse através dos céus, o Senhor ficaria em silêncio. Os anjos, no entanto, em suas posições, não ouviriam nenhuma ordem Sua. Seu filho, apesar de estar em angústia, não sentiria conforto vindo de Suas mãos.
“Ele deu o seu melhor,” Paulo argumenta, “Por que duvidar do amor dele?”
Antes que este dia termine, eu me sentarei em silêncio pela segunda vez. Desta vez, não ao lado da minha filha, mas diante de meu Pai. Desta vez não triste pelo que eu teria que dar, mas grato pelo que eu já recebi – a prova viva de que Deus se importa comigo.
Que Deus abençoe esta palavra na mente e no coração de cada um de nós neste dia de hoje e para sempre.